Nota de Pesar: Médico que homenageou Enfermagem faleceu em Florianópolis aos 97 anos

O médico e professor Osmard Andrade Faria faleceu no último dia 19 de janeiro. Foi professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina. Escreveu inúmeros livros de medicina e literatura, mas na Enfermagem ficou conhecido pelo poema que fez em homenagem à categoria num discurso realizado em 1956, que transcrevemos abaixo.

Entre suas obras estão: “Manual de Hipnose Médica e Odontológica” — com várias edições no Brasil e no exterior —, “Hipnose e Letargia”, “Panorama Atual das Funções Psi – Parapsicologia”, “Assim Escrevem os Catarinenses” – (antologia), “A Batalha de Araranguá”, “O Que é Parapsicologia”, “O Que é Hipnotismo”, “Este Humor Catarina” – (antologia), e “Eutanásia – A Morte Com Dignidade”.  Nascido no Rio de Janeiro, onde atuou como jornalista e radialista, teve participação destacada na época nos principais diários cariocas. Manteve programa literário e musical durante seis anos nas Rádio Mauá e Clube. Naqueles programas lançou artistas famosos com Maria Della Cosa e Geir Campos. 

Dr. Osmard era pai do advogado Claude Pasteur Faria, que foi Diretor Executivo do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA-SC) durante muitos anos. 

Enfermeira

Minha jovem enfermeira:

Não te pretendo neste momento dizer palavras nunca ditas

(e mesmo não as tenho),

nem laborar conselhos jamais aconselhados

(que a tanto não me alcanço).

Que, das palavras, perturbada que estás pela emoção,

talvez nem te apercebas dos conceitos, das imagens;

que, de conselhos, não é hora propícia de dá-los

nem de ouvi-los.

Chamado que fui, porém, para falar-te,

e para tal, bondosamente, me escolheste,

devo dizer-te, então, inicialmente,

desta emoção profunda e assoberbante

que a hora representa

e muito mais que a ti, a mim atinge.

Não é fácil suportar serenamente e sem nenhum orgulho

essa homenagem que o mérito ultrapassa

e em prodigalidade se extravasa,e que aponta a alguém

que, muito longe de ter o que ensinar,

muito mais em carinho e ternura foi brindado.

E que esse gesto difícil de igualar-se,

desprendido, altruísta, benfazejo,

de quem, de si dá tudo e tudo dá

a quem, por sem quem é, nem pode, ao menos,

senão em amizade e gratidão

tão bem retribuir,

que esse gesto, repito, seja sempre o teu modo de ser.

Não te espera outra coisa no caminho!

Não suponhas do mundo receber

paga boa ou louvor, gesto nobre ou penhor!

E também não careças de importância o trabalho que dás

que ele é grande, é imenso, é maior do que possas pensar;

que sem ti ─ ai de nós ─, teus pobres companheiros,

tão carentes que somos desse apoio sem par!

Não te cabe ─ bem o sei ─ ser responsável

da primeira palavra.

Mas a ti é que cabe, muita vez, a palavra final!

Não de ti, mas de nós, perguntarão das origens do mal

e a nós caberá determiná-lo

e melhor defini-lo e conhecê-lo,

e também é de nós que indagarás a conduta a seguir.

Mas é dessa conduta bem seguida

que resultará o sucesso, afinal!

Não se pode cuidar que a Medicina seja boa e bem feita,

nem precisa e exitosa a cirurgia poderá terminar

se a enfermagem falhar; se a enfermagem não for

por si só, excelente e afinada e perfeita e vigil e fiel.

Pensa bem que tu bem podes vir a tornar-te

em juiz da sentença!

O doente é supremo em seus direitos

e a coisa só corre à perfeição

se nós dermos de tudo em luta e vida

para que, ao findar nossa missão,

possa ele, também, de vida e luta ser bem recuperado.

Inda mais, Enfermeira, atenta agora

no que vou alertar-te. Escuta bem:

Se és capaz de esquecer a vida inteira

que és criança e que és moça e que és mulher;

e que sendo criança é preciso sonhar,

e que sendo já moça te cabe viver,

e depois de mulher se te impõe o dever

de tornares-te então na matriz que, por si,

há de ao certo gerar e assim perpetuar

a glória de existir;

se és capaz de esquecer que esse direito é teu

como é teu o direito de dormindo, sonhar,

de sonhando, esquecer a dor que o mundo chora;

e acordando depois, bem dormida e refeita,

esperar outra vez a hora de sonhar;

Se és capaz de olvidar que o mundo tem cantigas

e harmonias e sons que nem perceberás,

pois terás de entender madrigais nos gemidos

e terás de extrair sonatas de lamentos

e nos gritos e ais tu terás de escutar

serenatas de amor;

e terás de sentir, melancólica e triste

que a dor é universal,

e que a voz dessa dor tem acordes plangentes,

que de acordes, que tais, terás tu de compor

a louca sinfonia que ouvirás para sempre;

Se és capaz de, sofrendo, consolar a quem sofre;

se és capaz de, chorando, esboçar um sorriso

e com esse sorriso, alegrar a quem chora,

e depois, já sofrendo e chorando outra vez

nem te caiba sequer um sorriso e um consolo;

Se amanhã, sendo mãe, te sentires capaz

de deixar o teu filho esperando por ti

e acudir pressurosa a ajudar e a salvar

os filhos de outras mães

que, depois, nem sequer cuidarão de saber

se teu filho também teve alguém que o salvasse;

Se é capaz de, indormida, velar por quem dorme;

se és capaz ─ qual atriz ─ de transmudar-te

ao som das vozes que te clamam e de ter, numa só,

a presença bendita de todas as mulheres,

sendo aqui mãe gentil e ali, filha extremada,

dando a um a impressão da presença da esposa

e a outro a sensação de ter-te como irmã;

Se és capaz de, a qualquer, seja ele quem for

atender sem pensar no verso da medalha,

sem cuidar que amanhã possas dele dispor,

pois ninguém  ─ nota bem ─ considera um dever

dar seu sangue em penhor do sangue que o salvou,

e a mor parte das vezes nem sequer

te olharão com respeito; e gratidão

é coisa que nem sempre o coração

dos homens agasalha;

Se és capaz de aceitar a natureza humana

tal qual ela se fez, e a quem tudo se dá

o quase tudo é quase sempre um simples quase nada;

Se és capaz de, em labor, em vida e em coração

te dares toda, inteira, tendo apenas em troca

esse prazer que o dar traz a quem deu;

Se és capaz, afinal, de, esquecendo a ti mesma,

em momento nenhum esquecer de ninguém,

és então, ENFERMEIRA, e eu, feliz, te saúdo!

Recebe com orgulho o teu certificado

e exerce, honrada e nobre, a tua profissão.

(Escola de Auxiliares de Enfermagem, Hospital N. S. da Glória,

Assistência Médico-Social da Armada.

Discurso pronunciado por Dr. Osmard Andrade Fatia, Paraninfo da turma de 1956).