O médico e professor Osmard Andrade Faria faleceu no último dia 19 de janeiro. Foi professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina. Escreveu inúmeros livros de medicina e literatura, mas na Enfermagem ficou conhecido pelo poema que fez em homenagem à categoria num discurso realizado em 1956, que transcrevemos abaixo.
Entre suas obras estão: “Manual de Hipnose Médica e Odontológica” — com várias edições no Brasil e no exterior —, “Hipnose e Letargia”, “Panorama Atual das Funções Psi – Parapsicologia”, “Assim Escrevem os Catarinenses” – (antologia), “A Batalha de Araranguá”, “O Que é Parapsicologia”, “O Que é Hipnotismo”, “Este Humor Catarina” – (antologia), e “Eutanásia – A Morte Com Dignidade”. Nascido no Rio de Janeiro, onde atuou como jornalista e radialista, teve participação destacada na época nos principais diários cariocas. Manteve programa literário e musical durante seis anos nas Rádio Mauá e Clube. Naqueles programas lançou artistas famosos com Maria Della Cosa e Geir Campos.
Dr. Osmard era pai do advogado Claude Pasteur Faria, que foi Diretor Executivo do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA-SC) durante muitos anos.
Enfermeira
Minha jovem enfermeira:
Não te pretendo neste momento dizer palavras nunca ditas
(e mesmo não as tenho),
nem laborar conselhos jamais aconselhados
(que a tanto não me alcanço).
Que, das palavras, perturbada que estás pela emoção,
talvez nem te apercebas dos conceitos, das imagens;
que, de conselhos, não é hora propícia de dá-los
nem de ouvi-los.
Chamado que fui, porém, para falar-te,
e para tal, bondosamente, me escolheste,
devo dizer-te, então, inicialmente,
desta emoção profunda e assoberbante
que a hora representa
e muito mais que a ti, a mim atinge.
Não é fácil suportar serenamente e sem nenhum orgulho
essa homenagem que o mérito ultrapassa
e em prodigalidade se extravasa,e que aponta a alguém
que, muito longe de ter o que ensinar,
muito mais em carinho e ternura foi brindado.
E que esse gesto difícil de igualar-se,
desprendido, altruísta, benfazejo,
de quem, de si dá tudo e tudo dá
a quem, por sem quem é, nem pode, ao menos,
senão em amizade e gratidão
tão bem retribuir,
que esse gesto, repito, seja sempre o teu modo de ser.
Não te espera outra coisa no caminho!
Não suponhas do mundo receber
paga boa ou louvor, gesto nobre ou penhor!
E também não careças de importância o trabalho que dás
que ele é grande, é imenso, é maior do que possas pensar;
que sem ti ─ ai de nós ─, teus pobres companheiros,
tão carentes que somos desse apoio sem par!
Não te cabe ─ bem o sei ─ ser responsável
da primeira palavra.
Mas a ti é que cabe, muita vez, a palavra final!
Não de ti, mas de nós, perguntarão das origens do mal
e a nós caberá determiná-lo
e melhor defini-lo e conhecê-lo,
e também é de nós que indagarás a conduta a seguir.
Mas é dessa conduta bem seguida
que resultará o sucesso, afinal!
Não se pode cuidar que a Medicina seja boa e bem feita,
nem precisa e exitosa a cirurgia poderá terminar
se a enfermagem falhar; se a enfermagem não for
por si só, excelente e afinada e perfeita e vigil e fiel.
Pensa bem que tu bem podes vir a tornar-te
em juiz da sentença!
O doente é supremo em seus direitos
e a coisa só corre à perfeição
se nós dermos de tudo em luta e vida
para que, ao findar nossa missão,
possa ele, também, de vida e luta ser bem recuperado.
Inda mais, Enfermeira, atenta agora
no que vou alertar-te. Escuta bem:
Se és capaz de esquecer a vida inteira
que és criança e que és moça e que és mulher;
e que sendo criança é preciso sonhar,
e que sendo já moça te cabe viver,
e depois de mulher se te impõe o dever
de tornares-te então na matriz que, por si,
há de ao certo gerar e assim perpetuar
a glória de existir;
se és capaz de esquecer que esse direito é teu
como é teu o direito de dormindo, sonhar,
de sonhando, esquecer a dor que o mundo chora;
e acordando depois, bem dormida e refeita,
esperar outra vez a hora de sonhar;
Se és capaz de olvidar que o mundo tem cantigas
e harmonias e sons que nem perceberás,
pois terás de entender madrigais nos gemidos
e terás de extrair sonatas de lamentos
e nos gritos e ais tu terás de escutar
serenatas de amor;
e terás de sentir, melancólica e triste
que a dor é universal,
e que a voz dessa dor tem acordes plangentes,
que de acordes, que tais, terás tu de compor
a louca sinfonia que ouvirás para sempre;
Se és capaz de, sofrendo, consolar a quem sofre;
se és capaz de, chorando, esboçar um sorriso
e com esse sorriso, alegrar a quem chora,
e depois, já sofrendo e chorando outra vez
nem te caiba sequer um sorriso e um consolo;
Se amanhã, sendo mãe, te sentires capaz
de deixar o teu filho esperando por ti
e acudir pressurosa a ajudar e a salvar
os filhos de outras mães
que, depois, nem sequer cuidarão de saber
se teu filho também teve alguém que o salvasse;
Se é capaz de, indormida, velar por quem dorme;
se és capaz ─ qual atriz ─ de transmudar-te
ao som das vozes que te clamam e de ter, numa só,
a presença bendita de todas as mulheres,
sendo aqui mãe gentil e ali, filha extremada,
dando a um a impressão da presença da esposa
e a outro a sensação de ter-te como irmã;
Se és capaz de, a qualquer, seja ele quem for
atender sem pensar no verso da medalha,
sem cuidar que amanhã possas dele dispor,
pois ninguém ─ nota bem ─ considera um dever
dar seu sangue em penhor do sangue que o salvou,
e a mor parte das vezes nem sequer
te olharão com respeito; e gratidão
é coisa que nem sempre o coração
dos homens agasalha;
Se és capaz de aceitar a natureza humana
tal qual ela se fez, e a quem tudo se dá
o quase tudo é quase sempre um simples quase nada;
Se és capaz de, em labor, em vida e em coração
te dares toda, inteira, tendo apenas em troca
esse prazer que o dar traz a quem deu;
Se és capaz, afinal, de, esquecendo a ti mesma,
em momento nenhum esquecer de ninguém,
és então, ENFERMEIRA, e eu, feliz, te saúdo!
Recebe com orgulho o teu certificado
e exerce, honrada e nobre, a tua profissão.
(Escola de Auxiliares de Enfermagem, Hospital N. S. da Glória,
Assistência Médico-Social da Armada.
Discurso pronunciado por Dr. Osmard Andrade Fatia, Paraninfo da turma de 1956).